Menor
maduro e participante de decisões compartilhadas é algo a ser definido após
longa e fundamentada relação entre médico e paciente
Em
algumas instituições, é válida a omissão da autonomia pelo sentimento da
beneficiência.
Adolescentes
contam com autonomia suficiente para se recusar a tratamentos que, em 85% das
vezes, conseguem salvar a sua vida? E se seu único responsável legal – a mãe –
apoia tal decisão, mesmo ciente do risco de morte?
A
situação mencionada aconteceu em Connecticut, Estados Unidos, mas, por abrir
precedentes históricos e levar pais e profissionais da saúde à reflexão sobre
autonomia em doenças graves (mas curáveis), merece a atenção mundial.
Cassandra, de 17 anos, recebeu em setembro passado diagnóstico de linfoma de
Hodgkin – câncer que afeta as glândulas linfáticas.
Sua
mãe, Jackie, diz que ambas não aceitaram o tratamento possível, a
quimioterapia, o que levou o Estado a tomar a decisão de retirar a adolescente
de casa e submetê-la a tratamento forçado em hospital.
O
tratamento é compulsório, já que o Departamento de Crianças e Famílias (DCF)
local conseguiu ordem de detenção provisória. Isso fez com que Cassandra fosse
confinada em sala no Centro Médico Infantil de Connecticut, Hartford, com um
funcionário mantido na porta 24 horas por dia, pois teria fugido do tratamento
depois da segunda sessão de químio, em novembro.
Apesar
de os advogados da família apelaram à doutrina do “menor maduro”, o tratamento
compulsório foi mantido: no início de janeiro, a Suprema Corte concordou com o
argumento da equipe médica de a medida ser necessária para manter a vida da
garota.
“É
claro que essa não é a melhor maneira de promover um tratamento e deve haver
uma reflexão. É um paciente, não um prisioneiro”, opina Clóvis Constantino,
professor de Bioética, conselheiro do Cremesp e presidente do Departamento de
Bioética da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Porém, questiona: por que a
menina não expõe publicamente suas próprias razões, como fazem a mãe e
advogados?
Quem decide?
O
silêncio da garota não intriga apenas Constantino. Tanto que a imprensa local
tem expressado: “Cassandra é ofuscada pelas opiniões negativas fortes que a mãe
tem sobre o seu diagnóstico e tratamento do câncer”. E reforça: “Quem está
dirigindo o ônibus é a mãe de Cassandra” – em referência a quem é a mentora da
decisão.
Em
uma tentativa de explicação, um bilhete atribuído à jovem foi encaminhado, do
hospital, a uma afiliada da rede ABC News. “Entendo inteiramente que, sem
quimioterapia, a morte será o resultado. Os médicos deixaram isso bem claro. Só
que eles não conseguem precisar uma data de morte e eu acredito em qualidade de
vida, não em quantidade”, diz.
Indignado
com esse tipo de dedução está um bioeticista, conhecido por sua defesa
incondicional à autonomia do paciente. “O Instituto Nacional do Câncer diz que
mais de 85% dos que têm Hodgkin vão sobreviver. Seria necessária uma razão plausível
para uma criança negar-se ao tratamento”, afirma Arthur Caplan, da Universidade
de Nova Iorque. Para ele, Cassandra não
está invocando crença religiosa, ou forma alternativa de Medicina.
“Conforme
sua mãe relata, ela odeia o tratamento, por considerá-lo miserável – perda de
cabelo, sensação de mal-estar, náuseas e cansaço. Desculpa esfarrapada! O
Estado de Connecticut não concorda com essas duas. Nem eu”.
Na
opinião de William Saad Hossne, professor de Bioética, a conquista e a
consolidação do referencial bioético da autonomia devem ser comemoradas, por
dar o direito ao paciente de opinar quanto ao próprio tratamento.
“Mas a
autonomia não é soberana (...) Numa situação como essa, é válida a omissão da
autonomia, pelo sentimento da beneficência. Não dá para deixar uma criança
morrer assim”, explica. “O Juramento de Hipócrates destaca a ‘filia’, a amizade
profunda entre paciente e médico. Parece que não houve isso nesse caso”.
Autonomia
Adolescente
maduro e participante de decisões compartilhadas, explica Clóvis Constantino, é
algo a ser definido depois de longa e fundamentada relação entre médico e
paciente. “É preciso garantir se ele não está sendo manipulado ou agindo em
estado depressivo, o que anularia os sinais de ‘maturidade’.
De qualquer forma,
conduzir a criança e o adolescente ao seu futuro, à sua real autonomia de
adulto, é o grande peso da beneficência da Medicina, em contraponto à primazia
de sua autodeterminação, se houver risco de irreparável dano.”
Também
no Brasil os índices de cura de linfoma de Hodgkin em crianças atingem 90%,
como explica Lilian Cristofani, oncologista pediátrica do Hospital Sírio e
Libanês e livre-docente da USP. “Certa vez, em um hospital público, foi
necessária a retirada momentânea do pátrio poder, pela justiça, para fazermos
um tratamento de câncer. Hoje, o paciente está com 23 anos, saudável, feliz e
agradecido”.
O que dizem as normas
-
O médico não pode desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente
sobre práticas diagnósticas e terapêuticas salvo em caso de iminente risco de
morte (...). O sigilo deve ser
garantido, “desde que o menor tenha discernimento, salvo quando a não revelação
possa acarretar dano ao paciente”. (artigo 74 do Código de Ética Médica)
-
Crianças e adolescentes têm que assentir de forma livre e esclarecida sobre a
própria participação como sujeitos de pesquisa. (Res. 466/12 do Conselho
Nacional de Saúde-CNS)
-
É dever da família, comunidade, sociedade em geral e poder público assegurar a
efetivação dos direitos referentes à vida e à saúde das crianças e
adolescentes(...) e a obrigação de encaminhá-los a tratamento especializado.
(...) (Estatuto da Criança e do Adolescente)
Grifo nosso
Fonte: Jornal CREMESP, edição 322
Imagem: Reprodução
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