“Aqui, a morte se alegra em socorrer a vida”. O letreiro em latim no
laboratório de anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) serve de lembrete para os alunos de que os estudos só estão
sendo possíveis graças a um gesto de altruísmo.
Afinal, a imensa maioria dos corpos que são analisados à exaustão na
instituição está lá respeitando o último desejo de quem se doou, ainda em vida,
para a ciência, como parte do programa Vida após a Vida, que completou 15 anos
em 2016.
A iniciativa, pioneira no país, se tornou a única fonte de cadáveres
para estudo na UFMG e já garantiu 68 corpos neste período.
O programa é um dos diferenciais da universidade, que consegue disponibilizar
um cadáver por semestre para estudos de seus alunos de medicina, além de
atender universitários dos demais cursos da área da saúde, como enfermagem e
fisioterapia.
Atualmente, o laboratório da universidade tem 47 corpos, sendo que 23
deles ainda não chegaram a ser utilizados pelos estudantes. Segundo o técnico
em necropsia e anatomia da UFMG José Eustáquio Barboza, o contato com o corpo é
fundamental para a formação dos médicos e dos demais profissionais da saúde.
“Costumo dizer que um corpo é uma enciclopédia. O estudo da anatomia
humana pode até ser complementado por manequins, modelos, imagens de
computador, mas nada substitui o contato direto, em que seja possível mostrar
particularidades, características e diferenças”, afirmou.
“Doar o corpo é um gesto admirável, nobre, desprendido e corajoso. A
universidade fica extremamente grata por isso, já que hoje somos dependentes da
solidariedade de quem se oferece para ser estudado”, completou o professor do
Departamento de Anatomia e Imagem e coordenador do programa, Humberto Alves.
Processo. O ato de doar, segundo o supervisor administrativo da
Faculdade de Medicina, Maurílio Elias, é simples. O interessado em se oferecer
deve agendar uma entrevista com os professores do curso.
“É nesse momento que explicamos como funciona o programa e tiramos
algumas dúvidas”, detalhou.
Na sequência, o voluntário assina um termo de responsabilidade, ganha
uma carteirinha, com os contatos da universidade, e deve avisar a família. O
apoio dos parentes é fundamental, já que são eles que farão a doação de fato.
“O desejo da pessoa é importante, mas a anuência da família é fundamental. Se
ela não avisar, não temos nem como ficar sabendo que a pessoa morreu”, concluiu
Elias.
NÚMEROS
776 pessoas já se cadastraram no programa de doação.
68 é o número de cadáveres já recebidos pela UFMG.
8 novos corpos foram recebidos em 2016.
DIFICULDADE É GERAL
Universidades: Segundo o presidente da Sociedade
Brasileira de Anatomia, Richard Halti Cabral, existe uma dificuldade geral
entre as instituições de ensino do país na obtenção de cadáveres para estudo
Redução: “Por um lado, temos uma redução no número
de corpos não reclamados, que antigamente chamávamos de indigentes. Do outro,
existe um desinteresse das instituições em manter uma estrutura para receber
eventuais doações, já que manter um programa como o da UFMG é custoso”, diz
Exemplos: Como referência, ele cita programas da
Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Ciências da Saúde
de Porto Alegre.
PREOCUPAÇÕES
Ato de generosidade ainda
enfrenta vários tabus e preconceitos.
Quem chega para a entrevista de doação dos corpos costuma ter muitas
dúvidas sobre o processo, além de ter alguns medos e tabus para encarar.
Mas todos os temores são dissipados na conversa, que é obrigatória para
o voluntário.
Segundo o coordenador do programa Vida após a Vida, o professor
Humberto Alves, as questões vão desde problemas éticos a perguntas financeiras.
“Uma das dúvidas mais comuns é se tem que pagar, se há algum custo, ou
até se a família recebe alguma compensação. Informamos que não envolve dinheiro
de nenhum modo, e todos os custos são arcados pela faculdade”, detalha.
Outro tabu são questões religiosas, já que o corpo não
passa por velório e também não pode ser visitado após a doação.
“Os familiares precisam entender que, quando o corpo chega aqui, é como
se a pessoa tivesse sido enterrada. Mas não dá para vir até aqui e visitar, ou
ver o que nós vamos fazer com a pessoa que morreu”, destacou Alves.
Além disso, lendas urbanas também têm que ser desmentidas pela equipe
do programa.
“Tem quem chegue aqui contando que ouviu falar de médicos que
aceleraram a morte de alguém porque a faculdade precisava da doação do corpo.
Isso não faz o menor sentido, a nossa missão é justamente o contrário, salvar
as vidas das pessoas”, finalizou o professor. (JRF)
Captação começou após iniciativa
pioneira de idosa
O programa começou em 1999, quando uma idosa – que estava em estado
terminal – visitou a faculdade e informou que gostaria de doar seu corpo. O ato
pegou de surpresa os professores, que recorreram ao departamento jurídico da
UFMG para criar documentos, como o termo de doação, e receber o corpo. “Como
nós estávamos com uma escassez de material, decidimos institucionalizar o
programa Vida após a Vida”, conta o coordenador do programa, Humberto Alves.
Na época, a extinção dos manicômios representou também o fim de uma
fonte de cadáveres para estudo.
“Depois disso, firmamos convênios com o IML e outras instituições para
tentar suprir essa necessidade, mas foi um período difícil. Hoje, graças ao
programa, temos um planejamento”, disse.
Grifo nosso
Fonte: Jornal O Tempo
Imagem: Reprodução
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