Cinco anos após ser regulamentado pelo CFM (Conselho Federal
de Medicina), o testamento vital, documento por meio do qual a pessoa se
manifesta sobre quais tratamentos não quer se submeter no final de vida, não é
aplicado na rotina dos hospitais.
As
instituições e os médicos alegam que, por falta de legislação específica, há
uma insegurança jurídica.
Eles temem ser processados por familiares do
paciente que, muitas vezes, insistem para que se faça de tudo para salvar a
vida do doente, mesmo quando não há mais possibilidade de sobrevida e o
paciente não queira mais.
Na semana passada, a
Fehosp (federação dos hospitais, clínicas e outros estabelecimentos de saúde)
entregou ofício ao ministro da Saúde, Ricardo Barros, pedindo a elaboração de
projeto de lei regulamentando as diretrizes antecipadas de vontade do paciente.
O ofício da Fehosp
também foi enviado aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado,
Eunício Oliveira, e aos membros da Comissão de Seguridade Social e Família da
Câmara dos Deputados.
"A falta de uma
lei tem causado uma série de problemas no dia a dia. Muitos médicos não sabem
como proceder diante de um pedido do doente para que não seja submetido a
procedimentos dolorosos e invasivos em sua hora final", diz Yussif Ali
Mere Junior, presidente da Fehosp.
Segundo ele, embora o
avanço da medicina e a incorporação de novas tecnologias devam servir para
propiciar cura e qualidade de vida, muitas vezes estão apenas prolongando a dor
e o sofrimento do paciente terminal.
Para Douglas Crispim,
secretario da Academia Nacional de Cuidados Paliativos, não haveria necessidade
de lei federal se os hospitais tivessem equipes de cuidados paliativos
treinadas não apenas para cuidar dos doentes sem chances de cura, manejando a
dor e outros sintomas, como para acolher e orientar seus familiares.
"Em hospitais onde
existem equipes preparadas, o testamento vital é respeitado. Muitas vezes, o
desejo do paciente não é atendido por desinformação da equipe."
Ele diz que um cenário
ainda pior do que as intervenções desnecessárias é o médico respeitar o desejo
do paciente de não ser entubado, por exemplo, mas deixá-lo com falta de ar por
não ter a capacidade técnica de manejar os sintomas fora da UTI.
DIÁLOGO
A geriatra Ana Claudia
Arantes, especialista em cuidado paliativos, ajuda pacientes a elaborar
testamentos vitais há dez anos, cinco anos antes de o tema ser regulamentado
pelo CFM.
"Já
fui alertada por colegas de que advogados dos hospitais dizem que essa é uma
prática que pode trazer riscos. Risco é não conversar sobre isso. Eu nunca tive
problemas. A conversa com o paciente tem que incluir o familiar", diz ela.[..]
[...] Para ela, o medo de ser
processado é também uma forma de o médico evitar o desconforto de falar sobre
morte. "Desconheço casos de médicos processados por respeitar a vontade do
doente no final de vida. Porém, muitos médicos deveriam ter medo de ser
processados por tortura, por causar sofrimento ao paciente."
DOCUMENTO
IGNORADO
O advogado Eduardo
Alferes, que morreu aos 40 anos no início deste ano, dizia que o seu maior medo
não era a morte, mas ficar sofrendo, cheio de tubos, em uma UTI.
Para evitar isso, ele
decidiu fazer seu testamento vital, mas, mesmo assim, encontrou resistência de
profissionais de saúde.
A primeira pessoa a
ignorar o testamento de Alferes foi a enfermeira que trabalhava em seu
homecare. Segundo Tom Almeida, 46, primo do advogado, ela havia se afeiçoado ao
paciente e dizia que "iria ressuscitá-lo, que faria o máximo".
Outra enfermeira que
cuidava de Eduardo Alferes afirmou, durante um processo de internação, que, no
Brasil, esse documento não tinha valor.
A gestora de risco
Fabíola Murta, 42, passou por situação semelhante. Ela teve que enfrentar dois
médicos para fazer valer a vontade de seu marido, Carlos Murta, expressa na
diretiva antecipada de vontade –outro nome para o testamento.
A oncologista dele
queria interná-lo. "Ela falou que ele não tinha mais consciência, que nem
ia lembrar que tinha feito o documento", diz Fabíola. O neurologista
queria usar uma sonda. "Ele disse: 'Não quero saber de advogado e desse
documento. Eu sou o médico dele'", relembra.
Segundo Fabíola, o
neurologista dizia que já tinha se formado há muitos anos e que não conhecia a
aplicação da diretiva. Ele continuou, até a morte de Murta, a tentar executar
procedimentos que o paciente tinha especificado que não queria.
A mulher de Murta diz
que entende o lado dos médicos de querer fazer tudo pelo paciente, mas que a
intenção do testamento "é permitir que a pessoa tenha uma morte
digna".
DESCONHECIMENTO
Os casos mostram que,
além da alegada insegurança jurídica, ainda há desconhecimento do documento.
"Neste ano eu comecei a receber casos de profissionais de saúde com
dificuldades para aplicar o testamento, que diziam desconhecer o documento e a
validade dele", afirma Luciana Dadalto, advogada administradora do site
Testamento Vital e que há dez anos estuda o tema.
Segundo dados do
Colégio Notarial do Brasil, até abril deste ano, foram registrados 185
testamentos vitais.
No ano passado, foram
feitos 673 e, desde 2006 (data do primeiro registro em cartório do documento),
já foram feitos 3.127.
"Mas é preciso
lembrar que não existe obrigatoriedade de registro em cartório no Brasil",
afirma Luciana.
A advogada defende a
criação de uma lei sobre o assunto, mas diz acreditar que isso não será
suficiente.
"Precisa melhorar
o acesso à informação para todos. É um processo de conhecimento geral, que não
pode ser direcionado só ao médico", diz ela.
Grifo nosso
Fonte: folhaonline/Cláudia
Collucci/Phillippe Waranabe
Imagem:Reprodução
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